A saga dos trabalhadores ao longo da história de Rondônia

02-05-2012 11:16

 

A saga dos trabalhadores ao longo da história de Rondônia

02/05/2012

No século XVII, indígenas da região onde hoje fica o Estado de Rondônia, na divisa entre as capitanias do Mato Grosso e São José do Rio Negro, trabalhavam na coleta de especiarias como salsaparrilha, canela e copaíba para colonos e proprietários de terras contratados por companhias de comércio internacional. O trabalho era remunerado, mas quem ficava com o dinheiro eram os missionários, encarregados de converter os indígenas ao catolicismo. A informação é do professor do Departamento de História da Universidade Federal de Rondônia (Unir), Marco Teixeira, que em entrevista ao Diário fez um relato trágico da trajetória dos trabalhadores que, com sua mão de obra, construíram o Estado de Rondônia.
Primeiro foram os indígenas, depois vieram os escravos africanos, os arigós nordestinos e os trabalhadores de várias nacionalidades, inclusive brasileira, que participaram da construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Na história recente, migrantes de todo o país se dirigiram a Rondônia no final do século passado e atualmente, uma nova leva de trabalhadores - os barrageiros que constroem as Usinas Hidrelétricas do Madeira – oferecem sua valiosa contribuição para o desenvolvimento econômico da região.
A história de Rondônia é marcada por ciclos econômicos. Depois do primeiro, que teve como principal produto as drogas do sertão, veio o ciclo do ouro no Vale do Guaporé, iniciado em 1736. Segundo o professor Teixeira, os portugueses, em guerra com a Espanha, preferiram trazer escravos da África para o garimpo, temendo uma rebelião indígena e uma aliança dos mesmos com os vizinhos espanhóis. A escolha tinha outra vantagem: o lucro substancial do mercado de escravos. Assim, os portugueses ganhavam com o ouro e também com a compra dos negros.
Calcula-se que a população no vale do Guaporé naquela época era formada por cerca de sete mil escravos africanos e menos de mil portugueses. A vida útil de um escravo no Vale do Guaporé era de aproximadamente dois anos, nos canaviais do Nordeste chegava a 10 anos e na Bacia do Madeira, onde foram feitas tentativas de implantação de colônias, não passava de seis meses.  Considerada como a mais insalubre do mundo, a região do Madeira era propensa a doenças tropicais como o Maculo, uma febre diarréica que matava o portador em poucos dias e provocava grandes sofrimentos. A partir de 1815, a extração do ouro deixou de ser atrativa no Vale do Guaporé e muitos escravos que não serviam para o trabalho foram deixados para trás. Descendentes deles vivem hoje em quilombos no Vale do Guaporé.

os Arigós do Nordeste

 

Na metade do Século XIX, o látex explorado em seringais da Amazônia ocasionou a transferência para a região de mais de 100 mil nordestinos, os chamados arigós. “Era praticamente toda a mão de obra útil do Nordeste, que fugia de uma das piores secas registradas na região em 1877”, segundo Marcos Teixeira. Para trás, eles deixaram a terra natal e a família. Na nova terra, as mulheres eram raras e muitos confeccionavam bonecas de pano para se sentirem acompanhados. O trabalho no meio da floresta era em regime de semi-escravidão. Desde o momento em que começavam a trabalhar também passavam a acumular uma dívida interminável com os seringalistas e viviam submetidos aos interesses dos patrões.

 

Leilão de mulheres

 

Em 1912, o navio Netuno chegou ao pequeno vilarejo de Santo Antônio do Madeira com uma carga de 43 mulheres, prostitutas trazidas do Rio de Janeiro, que foram leiloadas pelo governo brasileiro. “O leilão foi feito pelo governo, mesmo depois de a escravidão ter sido abolida do País, em 1888”, ressalta Marcos Teixeira. Houve casos de mulheres arrematadas por consórcios formadas por cinco, seis homens. Muitas morreram vítimas de maus tratos. Um grupo delas foi levado por Mãe Esperança Rita, que foi uma das fundadoras do bairro Mocambo, onde ela comandava um terreiro de candomblé. “Na companhia de Mãe Esperança, elas trabalhavam como lavadeiras e muitas constituíram famílias, alcançando enfim condições de uma vida digna”, segundo o professor Marcos Teixeira.

 

Madeira-Mamoré

 

No período de 1907 a 1912, a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré serviu de pano de fundo para mais um ciclo migratório de trabalhadores e mais uma página trágica da história de Rondônia. De acordo com os registros médicos da época, informa o professor, cerca de 6,5 mil trabalhadores morreram na obra. “Mas este número é bem maior, porque havia maquiagem nos registros do Hospital da Candelária e outros morreram depois de terem sido demitidos. Somam nesta estatística mórbida, cerca de 10 mil índios karipunas que habitavam a região”, ressalta.   
O vale do Madeira, onde foi construída a ferrovia, era comparada ao inferno pelos trabalhadores. As doenças tropicais, com destaque para o impaludismo, exigiam a distribuição diária de quinino. A grande incidência de mosquitos era um tormento. Também havia o confronto com os índios e os perigos da floresta. A falta de alimentos completava o trágico contexto.

 

Soldados da borracha

 

Antes de 1907, outras duas tentativas de construção da Estrada de Ferro provocaram a morte de outras levas de trabalhadores. Em 1940, uma nova legião de nordestinos – os soldados da borracha - foi transferida para a Amazônia, para suprir com a borracha originada dos seringais nativos da região a máquina de guerra dos aliados, durante a II Guerra. Maior produtora de borracha na época, a Malásia estava em poder dos japoneses. O professor Marcos Teixeira informa que os pracinhas, arregimentados para fortalecer os aliados, somavam entre 800 a 900 pessoas. Já o esquadrão dos soldados da borracha era formada por 22.500 nordestinos.
Trazidos para a Amazônia na condição de soldados, eles tinham direito a um soldo garantido pelo governo americano e viajaram com a promessa de que teriam uma passagem de volta depois de dois anos de trabalho. Foram enganados pelo governo brasileiro de Getúlio Vargas. Internados na floresta, trabalharam na condição de semi-escravidão e muitos morreram sem condições de voltar para sua terra. Até hoje lutam para terem seus direitos reconhecidos e encontram grandes dificuldades para comprovar a condição de soldado da borracha.
No mesmo período, Getúlio Vargas promoveu a “Marcha para o Oeste”, para diminuir a tensão social no sul e sudeste do Brasil e ocupar os vazios populacionais do Centro-Oeste e da Região Amazônica.

Passeios até o Mercado do Peixe

 

Um grupo de 25 ex-ferroviários da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, da Cooperativa dos Ex-Ferroviários do complexo,  administrarão a partir do próximo final de semana, passeios com uma litorina e duas cegonhas entre a praça da ferrovia e o Mercado do Peixe, no bairro Triângulo. Neste ponto, os trilhos foram interrompidos com o desmoronamento de um bueiro, já restaurado pela prefeitura, mas a ferrovia continua interrompida. O pequeno trajeto é uma espécie de prêmio de consolação para os ex-ferroviários, que sonham em refazer o antigo percurso de 366 km da estrada de ferro, desde Porto Velho até Guajará –Mirim, na fronteira com a Bolívia.
Um dos integrantes da Cooperativa, o ex-ferroviário Lord Jesus Brown, começou a trabalhar na ferrovia com 15 anos e dedicou boa parte da vida ao complexo, mesmo depois que foi desativado, nos anos 70. O avô de Lord, Arnold Brown, chegou em Rondônia em 1864 e o pai, Griffits Brown, em 1961, provenientes da ilha caribenha de Barbados, na época uma possessão inglesa.
Umbilicalmente ligado à ferrovia, Lord cobra mais respeito e vontade política com o complexo, cuja construção completa cem anos em 2012. “Muita coisa foi roubada da ferrovia, inclusive dois sinos de ouro”. Desativado pelo 5º Batalhão de Engenharia e Construção (5º BEC), sob ordem do Governo Federal, a ferrovia que levou à morte mais de 6 mil trabalhadores ficou abandonada a partir da década de 1970.
O trecho  de 8 quilômetros que vai de Porto Velho até a vila de Santo Antônio e o seu entorno é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e a  sua recuperação e revitalização fazem parte das compensações  da obra da UHE de Santo Antônio, “mas as obras andam muito devagar”, considera Lord. Ele também aponta erros nos trabalhos de revitalização da praça e cobra mais segurança para o patrimônio. “À noite, a praça é utilizada para o uso de drogas e prostituição”, afirma. A prefeitura mantém 12 guardas para zelar pelo complexo.  
A Cooperativa dos Ex-Ferroviários foi contratada pela prefeitura para fazer a recuperação de vagões e fazer a manutenção dos trilhos, entre outros trabalhos, de acordo com Manoel Araújo Martins, que recentemente foi eleito para presidir a entidade.

 

Sonho de ser soldado enterrado nos seringais

 

José Romão Grande, 89 anos, saiu da cidade de Parnaíba, no Piauí, no dia 3 de março de 1943 com destino à Amazônia. E nunca mais voltou. “Eu saí da minha terra com a promessa de ganhar um bom salário, como soldado, e a passagem de volta, mais indenização, depois de dois anos de trabalho”, conta ele.
No estado do Amazonas, ele e mais 48 companheiros  foram levados para o seringal Rio Negro. “Só 18 retornaram. Os outros morreram lá mesmo”, conta seu Romão. Nunca mais ele soube da família. “Naquela época era muito difícil a gente se comunicar”, explica.
 “A vida no seringal era muito dura. A gente ficava abandonado, tinha muitas doenças, como impaludismo, béri-béri, os confrontos com os índios, as onças”, conta José Cândido da Silva, 91 anos,também soldado da borracha, que deixou a cidade de Natal, no Rio Grande do Norte, onde vivia com a família, com 22 anos, para fazer a vida na Amazônia. Começou a vida de seringueiro em Tarauacá, no Acre.
Os dois  fazem parte do Sindicato dos Soldados da Borracha (Sindsbor), que  luta para resgatar uma dívida do governo brasileiro, que transferiu, na década de 1940, um contingente de mais de 20  mil nordestinos para explorar os seringais nativos da Amazônia e fornecer borracha para os Aliados durante a  II Guerra Mundial.  A entidade trava uma luta difícil contra  o tempo e a burocracia fria do estado. Recentemente, dois companheiros faleceram.  José Rodrigues e Augusto Joaquim dos Santos. De acordo com o Sindsbor, “hoje resta aproximadamente 15% da categoria”.

PENSÃO

Os soldados da borracha ganham uma pensão de dois salários mínimos e lutam pela equiparação aos pracinhas, com a aprovação da proposta da Emenda Constitucional 556/2002. Eles também aguardam uma resposta da justiça à ação judicial número 2010.4100000084-5, que tramita na Justiça Federal de Rondônia por dano moral e material a favor da categoria. Recentemente, representantes da Secretaria de Direitos Humanos promoveu uma audiência pública em Porto Velho para ouvir os soldados da borracha.  
O Sindsbor aguarda consulta a um  livro de registros do Ministério da Guerra, onde constam os nomes dos soldados da borracha arregimentados pelo governo brasileiro na década de 1940. O livro vai ajudar a comprovar quem foram os seringueiros transferidos para a Amazônia na condição de soldado. “Muitos vieram por conta própria e por isso não têm os mesmos direitos”, considera José Cândido.

A eterna jornada dos barrageiros

 

O Sindicato da Construção Civil de Rondônia  (Sticcero) tem atualmente 35 mil filiados. No início do segundo semestre do ano passado, a entidade contava com 45 mil associados. Esta grande variação, de acordo com o presidente do sindicato, Raimundo Soares da Costa, deve-se à grande rotatividade que existe no setor. “As chuvas do período amazônico impedem o avanço da construção de estradas e  as empreiteiras  dispensam os funcionários encarregados do serviço mais pesado. Só são mantidos os trabalhadores com mão de obra especializada, que são mais difíceis de contratar. No final do tempo das chuvas, as contratações recomeçam”.  
Na medida em que avançam as obras nas UHEs do Madeira também são feitas demissões. Na UHE de Santo Antônio os demitidos somam entre 6 mil a 7 mil, informa Raimundo e boa parte deles já seguiram para o Pará, para trabalhar na UHE de Belo Monte.  

PERSPECTIVA

O soldador Marcelo Lima de Moraes, 30 anos, é um caso típico. Natural de Tucuruí, no Pará, trabalhou neste empreendimento em duas ocasiões, durante quatro anos na primeira vez e por seis meses na segunda. A perspectiva de melhorar o salário fez com que se mudasse para Porto Velho, onde se encontra há dois anos, mas já faz planos para voltar para o Pará no final do ano, onde tentará uma vaga em Belo Monte.
Ficar longe de casa e da família não é fácil, afirma Marcelo, mas o salário compensa. O salário base é de R$ 2.400, mas com as horas extras ele ganha entre R$ 3.200 a R$ 3.500 por mês na UHE de Santo Antônio. A maior reclamação é os altos preços do aluguel e do supermercado. “É sempre assim, a construção de uma grande obra  inflaciona os preços. Em Porto Velho, onde estão sendo construídas duas hidrelétricas, não poderia ser diferente”.
Marcelo admite que tem uma situação privilegiada. Os funcionários que trabalham no pesado ganham menos e o custo de vida leva boa parte dos salários. “A gente tem que aproveitar todas as oportunidades que aparecem. Eu comecei a trabalhar como soldador com 14 anos e sempre procurei fazer a diferença no trabalho. Quem se esforça consegue ir adiante, mas cada cabeça tem seu pensamento próprio”, diz ele.

ANGÚSTIA

Para o presidente do Sticcero, as grandes obras representam uma oportunidade de trabalho para pessoas que vivem em regiões onde há dificuldades para arrumar uma vaga,mas a rotatividade é uma fonte de angústia permanente. “Hoje em dia há muita procura por trabalhadores na construção civil e há dificuldade para a contratação de mão de obra treinada”.
O historiador Marcos Teixeira explica que a falta de qualificação de mão de obra no Brasil é uma conseqüência do desprezo com que os trabalhadores foram tratados ao longo da história. “Tratados como mão de obra barata, os trabalhadores sempre foram vistos como pessoas  inferiores no país e por isso não foram feitos investimentos para qualificá-los. Esta situação só mudou recentemente quando o país passou a necessitar de mão de obra treinada para continuar crescendo economicamente”.

 

Milhares de migrantes buscam o novo ‘Eldorado’

 

Na década de 1970, Rondônia era ainda um Território Federal e o povo ansiava pela autonomia. Só havia dois municípios – Porto Velho e Guajará-Mirm, na divisa com o Estado do Amazonas e o país da Bolívia. O acesso era pelo rio Madeira. A BR-364, construída na década de 1960, ligava Porto Velho ao sul do País. As condições eram precárias e as viagens podiam levar mais de uma semana. Foi quando o governo militar da época adotou uma política de integração da Amazônia, com a construção das rodovias Transamazônica e Belém-Brasília e a transferência de trabalhadores para a nova fronteira agrícola.
Além de “Integrar para não Entregar”, protegendo a  região Amazônica do perigo da “internacionalização”, a política dos militares visava diminuir tensões sociais nas regiões sul e sudeste. Neste contexto, foi criado o Estado de Rondônia. E para povoá-lo, o governo federal lançou uma campanha nacional chamando trabalhadores de todo o país para o “novo Eldorado”, onde havia terra barata para quem se aventurasse a viver na Amazônia.

OPORTUNIDADES

 Localizado na fronteira agrícola, o Território Federal de Rondônia  foi transformado em Estado em 21 de dezembro de 1981 e passou a figurar na imprensa nacional como um lugar de grandes oportunidades. Com o asfaltamento da BR-364  na década de 1980, milhares de migrantes se dirigiram para o novo “Eldorado”. O estudo da USP “Redistribuição da População e Meio Ambiente: São Paulo e Centro Oeste” registra o deslocamento de 285.494 migrantes para Rondônia na década de 1970 e de 411.795 na década de 1980.
 De acordo com o professor de sociologia da Unir Antônio Barbosa, a pesquisa, o sonho do Eldorado dos pequenos e médios agricultores que se deslocaram para Rondônia esbarrou na falta de investimentos. “O capital bancário e industrial foi disponibilizado para a pecuária extensiva e faltou apoio técnico e financeiro para a agricultura familiar. Os sulistas foram mais bem sucedidos que os nordestinos porque já haviam vivenciado o modelo de ocupação adotado no novo estado. O resultado deste processo foi a expropriação da terra e a expulsão do campo.  Muitos passaram o lote adiante e seguiram em busca de outro “Eldorado”.

O ciclo sem lei do garimpo

 

Durante o período do regime militar, outra campanha governamental patrocinada pelo governo federal foi responsável pela migração de milhares de trabalhadores para Rondônia com a promessa de terras baratas. Em Porto Velho, o garimpo do rio Madeira levou à morte um número ainda não calculado de trabalhadores de diversas regiões do Brasil.
Os garimpos eram territórios sem lei e sem polícia e ofereciam a possibilidade da pessoa ganhar grandes fortunas em pouco tempo de trabalho. Mas assim como ganhavam muito dinheiro, os garimpeiros também gastavam com facilidade. Muitos foram assassinados com o corte de mangueiras de respiração utilizadas para mergulhar nas águas profundas do rio Madeira. O garimpo do ouro deixou como herança para Porto Velho uma periferia pobre que cresceu com a migração de trabalhadores que construíram a UHE de Samuel, nos anos 80.
A construção das UHEs provocou outra migração para Rondônia. “São os barrageiros, andando de um lado ao outro do país, atrás dos empregos gerados pelas obras estruturantes geridas pelo governo federal. Mais uma obra que está expandindo a periferia de Porto Velho e deixando fortes impactos ambientais. Infelizmente, ao que parece, não aprendemos a lição deixada em Porto Velho com a construção da UHE de Samuel”, afirma o historiador Marcos Teixeira.